domingo, 27 de novembro de 2011

A máscara da morte rubra (Edgar Allan Poe)

Durante muito tempo devastara a "Morte Rubra" aquele país. Jamais se vira peste tão fatal e tão terrível. O sangue era a sua encarnação e o seu sinete: a vermelhidão e o horror do sangue. Aparecia com agudas dores e súbitas vertigens, seguindo-se profusa sangria pelos poros e a decomposição. Manchas escarlates no corpo e sobretudo no rosto da vítima eram o anátema da peste, que a privava do auxílio e da simpatia de seus semelhantes. E toda a irrupção, progresso e término da doença não duravam mais de meia hora.

Mas o Príncipe Próspero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus domínios se viram despovoados da metade de seus habitantes mandou chamar à sua presença um milheiro de amigos sadios e joviais dentre os cavalheiros e damas de sua corte, retirando-se com eles, em total reclusão, para uma de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto e magnífico, criação de príncipes de gosto excêntrico, embora majestoso. Cercava-o forte e elevada muralha, com portas de ferro. Logo que entraram, os cortesãos trouxeram fornos e pesados martelos para rebitar os ferrolhos. Tinham resolvido não proporcionar meios de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos de fora ou ao frenesi dos de dentro.

A abadia estava fartamente provida. Com tais precauções, podiam os cortesãos desafiar o contágio. Que o mundo exterior se arranjasse por si. Enquanto isso, de nada valia nele pensar, ou afligir-se por sua causa. Providenciara o príncipe para que não faltassem diversões. Havia jograis, improvisadores, bailarinos, músicos. Havia Beleza e havia vinho. Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora, a "Morte Rubra".

Foi quase ao término do quinto ou sexto mês de sua reclusão, enquanto a peste raivava mais furiosamente lá fora, que o Príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da mais extraordinária magnificência.

Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Mas antes descrevamos os salões em que ela se desenrolava. Era uma série imperial de sete salões. Em muitos palácios, contudo, tais sucessões de salas formam uma longa e reta perspectiva quando as portas se abrem de par em par, não havendo quase obstáculo à perfeita visão de todo o conjunto. Aqui, o caso era bastante diverso, coisa aliás de esperar do amor do duque pelo fantástico. Os aposentos estavam tão irregularmente dispostos que a visão abrangia pouco mais de cada um de uma vez. De vinte ou de trinta em trinta jardas havia uma curva aguda e, a cada curva, uma nova impressão.

À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma enorme e estreita janela gótica abria-se para um corredor fechado que acompanhava as voltas do conjunto. Essas janelas eram providas de vitrais, cuja cor variava de acordo com o tom dominante das decorações do aposento para onde se abriam. O da extremidade oriental, por exemplo, era azul, e de azul vivo eram suas janelas. O segundo aposento tinha ornamentos e tapeçarias purpúreos, e purpúreas eram as vidraças. O terceiro era todo verde, e verdes eram também as armações das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada. 9 quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo aposento estava totalmente coberto de tapeçarias de veludo preto, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e da mesma cor. Mas somente nesta sala a cor das janelas não correspondia à das decorações. As vidraças, ali, eram escarlates, da cor de sangue vivo.

Ora, em nenhum daqueles sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro em meio à profusão de ornamentos dourados que se espalhavam por todos os cantos ou pendiam do forro, Luz de espécie alguma emanava de lâmpada ou vela, dentro da série de salas. Mas, nos corredores que acompanhavam a perspectiva, erguia-se, em frente de cada janela, uma pesada trípode com um braseiro que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e assim iluminava deslumbrantemente a sala, produzindo numerosos aspectos vistosos e fantásticos. Na sala negra, porém, o efeito do clarão que raiava sobre as negras cortinas, através das vidraças tintas de sangue, era extremamente lívido e dava uma aparência tão estranha às fisionomias dos que entravam que poucos eram os bastante ousados para nela penetrar.

Era também nesse salão que se erguia, encostado à parede que dava para oeste, um gigantesco relógio de ébano. O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, mas tão enfático e característico que, de hora em hora, os músicos da orquestra viam-se forçados a parar por instantes a execução da música para ouvir-lhe o som: e dessa forma, obrigatoriamente, cessavam os dançarmos suas evoluções e toda a alegre companhia sentia-se, por instantes, perturbada. E enquanto os carrilhões do relógio ainda soavam, observava-se que os mais alegres tornavam-se pálidos e os mais idosos e serenos passavam as mãos pela fronte, como se em confuso devaneio ou meditação. Mas quando os ecos cessavam por completo, leves risadas imediatamente contagiavam a reunião; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam de seu próprio nervoso e loucura, fazendo votos sussurrados, uns aos outros, para que o próximo carrilhonar do relógio não produzisse neles idêntica emoção. E, no entanto, passados os sessenta minutos (que abarcam três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), ouvia-se de novo outro carrilhonar do relógio, e de novo se viam a mesma perturbação, o mesmo tremor, as mesmas atitudes meditativas. A despeito, porém, de tudo isso, que esplêndida e magnífica folia!

O duque tinha gostos característicos. Sabia escolher cores e efeitos. Desprezava os ornamentos apenas em moda. Seus desenhos eram muito audazes e vivos, e suas concepções esplendiam com um lustre bárbaro. Muita gente o julgava louco. Mas seus cortesãos achavam que não. Era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo, para se estar certo de que ele não o era.

Por ocasião dessa grande festa, dirigira ele próprio, em grande parte, os mutáveis adornos dos sete salões e fora o seu próprio gosto orientador que escolhera as fantasias. Mas não havia dúvida de que eram grotescas. Havia muito brilho, muito esplendor, muita coisa berrante e fantástica - muito disso que depois se viu no Hernani. Havia formas arabescas, com membros e adornos desproporcionados.

Havia concepções delirantes, como criações de louco; havia muito de belo e muito de atrevido, de esquisito, algo de terrível e não pouco do que poderia causar aversão. Na realidade, uma multidão de sonhos deslizava para lá e para cá nas sete salas. E estes sonhos giravam de um canto para outro, tomando a cor das salas, e fazendo a música extravagante da orquestra parecer o eco de seus passos.

Mas logo soava o relógio de ébano que se erguia na parede de veludo. E então, durante um instante, tudo parava e tudo silenciava, exceto a voz do relógio. Os sonhos paravam, como que gelados. Os ecos do carrilhão, porém, morriam - haviam durado apenas um instante -, e uma leve gargalhada, mal contida, acompanhava os ecos que morriam. E logo depois a música explodia, e os sonhos reviviam e rodopiavam mais alegremente do que dantes, tingindo-se da cor das janelas multicoloridas, através das quais se filtravam os luminosos raios das trípodes. Mas então nenhum dos mascarados se aventurava até a sala que, entre as sete, mais ao ocidente se encontrava, porque a noite estava declinando e ali dimanava urna luz mais vermelha através das vidraças sangüíneas, e o negror dos panejamentos tenebrosos apavorava. E, para aqueles cujos pés pisavam o tapete negro, do relógio de ébano ali perto provinha um rumor abafado, mais solenemente enfático do que o que alcançava os ouvidos de quem se comprazia nas alegrias dos outros aposentos mais distantes.

Mas esses outros aposentos estavam densamente apinhados e neles palpitava febrilmente o coração da vida. E a folia continuou a rodopiar, até que afinal o relógio começou a soar a meia-noite. E, então a música parou, como já disse; e aquietaram-se as evoluções dos dançarmos; e, como dantes, houve uma perturbadora paralisação de tudo. Mas agora o carrilhão do relógio teria de bater doze pancadas. E por isso aconteceu talvez que maior número de pensamentos, e mais demoradamente, se inserisse nas meditações daqueles que, entre os que se divertiam, meditavam. E por isso talvez aconteceu também que, antes de silenciarem por completo os derradeiros ecos da última pancada, muitos foram os indivíduos, em meio à multidão, que puderam certificar-se da presença de um vulto mascarado que até então não havia chamado a atenção de ninguém. E, tendo-se espalhado, aos cochichos, a notícia dessa nova presença, elevou-se imediatamente dentre a turba um burburinho ou murmúrio que exprimia desaprovação e surpresa a princípio e, finalmente, terror, horror e náusea.

Numa assembléia de fantasmas, tal como a descrevi, bem se pode supor que tal agitação não podia ter sido causada por uma aparência vulgar. Na verdade, a licença carnavalesca da noite era quase ilimitada; mas o vulto em questão excedia o próprio Herodes em extravagância e ia além dos limites indecisos de decência exigidos pelo próprio príncipe. Há no coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo para os mais pervertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos, há assuntos com os quais não se pode brincar. Todos os presentes, de fato, pareciam agora sentir profundamente que nos trajes e atitudes do estranho não havia finura nem conveniência. Era alto e lívido, e envolvia-se, da cabeça aos pés, em mortalhas tumulares. A máscara que ocultava o rosto era tão de modo a quase reproduzir a fisionomia de um cadáver enrijecido que a observação mais acurada teria dificuldade em perceber o engano.

E, contudo, tudo isso poderia tolerar-se, se não mesmo aprovar-se, pelos loucos foliões, não tivesse o mascarado ido ao ponto de figurar o tipo da "Morte Rubra". Seu traje estava salpicado de sangue, e a ampla testa, assim como toda a face, borrifada de horrendas placas escarlates. Quando os olhos do Príncipe Próspero caíram sobre aquela imagem espectral (que, em movimentos lentos e solenes, como se quisesse representar mais completamente seu papel, rodopiava aqui e ali entre os dançarmos), viram-no ser tomado de convulsões, a princípio um forte tremor de pânico ou repugnância, para logo depois enrubescer-se de raiva.

- Quem ousa - perguntou ele, roucamente, aos cortesãos que o cercavam -, quem ousa insultar-nos com tão blasfema pilhéria? Agarrem-no e desmascarem-no, para podermos conhecer quem teremos de enforcar, ao amanhecer, no alto das ameias!

Ao pronunciar estas palavras achava-se o Príncipe Próspero no salão dourado e azul, do lado do poente. Elas atravessaram todas as sete salas, alta e claramente, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música havia silenciado a um gesto de sua mão.

Era no salão azul que se achava o príncipe, tendo ao lado um grupo de cortesãos pálidos. Logo que ele falou, houve um leve movimento de investida por parte daquele grupo na direção do intruso, que, no momento, se encontrava quase ao alcance da mão, e agora, em passadas firmes e decididas, mais se aproximava do príncipe. Mas em virtude de um indefinível terror que a todos os presentes causara o louco atrevimento do mascarado, não se achou ninguém que ousasse estender a mão para agarrá-lo. De modo que, sem empecilho, passou a uma jarda do príncipe, e, enquanto toda a numerosa assembléia, como movida por um só impulso, recuava do centro das salas para as paredes, seguiu ele seu caminho sem deter-se, com os mesmos passos solenes e medidos que desde o começo o haviam distinguido, do salão azul ao salão purpúreo, do purpúreo ao verde, do verde ao alaranjado, deste ao branco e até mesmo ao roxo, sem que um movimento de decisão se fizesse para dete-lo. Foi então, porém, que o Príncipe Próspero, enlouquecido de raiva e de vergonha de sua própria e momentânea covardia, correu precipitadamente através das seis salas, sem que ninguém o seguisse, pois um terror mortal de todos se apossara. Brandia um punhal desembainhado e se aproximara, com rápida impetuosidade, a poucos passos do vulto que se retirava, quando este último, tendo alcançado a extremidade do salão de veludo, voltou-se subitamente e arrostou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo e o punhal caiu, cintilante, sobre o negro tapete, onde, logo, instantaneamente, tombou mortalmente abatido o Príncipe Próspero. Então, recorrendo à coragem selvagem do desespero, numerosos foliões lançaram-se sem demora no lúgubre aposento, e, agarrando o mascarado, cujo alto vulto permanecia ereto e imóvel dentro da sombra do relógio de ébano, pararam, arfantes de indizível pavor, ao sentir que nenhuma forma tangível se encontrava sob a mortalha e por trás da máscara cadavérica, quando as seguraram com violenta rudeza.

E foi então que reconheceram estar ali presente a "Morte Rubra". Ali penetrara, como um ladrão noturno. E um a um, foram tombando os foliões, nos salões da orgia, orvalhados de sangue, morrendo na mesma posição desesperada de sua queda. E a vida do relógio de ébano se extinguiu com a do último dos foliões. E as chamas das trípodes expiraram. E o ilimitado poder da Treva, da Ruína e da "Morte Rubra" dominou tudo.